domingo, 28 de agosto de 2011

LITERATURA: A CIDADE DE DEUS

Santo Agostinho
(Tagaste, 354 - Hipona, 430)
Filósofo e padre da Igreja. Filho de mãe cristã (Mónica, santificada pela Igreja) e de pai pagão, não é baptizado. Menospreza o cristianismo até que, aos dezoito anos, enquanto estuda em Cartago, ao ler o Hortênsio de Cícero, inicia uma procura angustiada da verdade. Após uns anos de adesão ao maniqueísmo, converte-se primeiro a esta doutrina no ano de 374 e posteriormente ao cepticismo. Professor de Retórica em Cartago e depois em Milão. Nesta última cidade (384) conhece as doutrinas neoplatónicas; isto, mais o contacto com Santo Ambrósio, bispo da cidade, predispõe-o a admitir o Deus dos cristãos. Pouco a pouco apercebe-se de que a fé cristã satisfaz todas as suas inquietações teóricas e práticas e entrega-se inteiramente a ela; é baptizado em 387. Passa por Roma e regressa à sua Tagaste natal, na costa africana, onde organiza uma comunidade monástica. Ordenado sacerdote em 391, quatro anos mais tarde é já bispo de Hipona, cargo em que desenvolve uma actividade pastoral e intelectual extraordinária até à sua morte.
Entre as suas obras contam-se grandes tratados (Contra Académicos), obras polémicas contra outras correntes teológicas e filosóficas, e as suas famosas Confissões. O conjunto da sua obra e do seu pensamento fazem dele o grande filósofo do cristianismo anterior a Tomás de Aquino (século xiii). O seu platonismo domina a filosofia medieval.
Para compreender a filosofia de Santo Agostinho há que ter em conta os conceitos augustinianos de fé e razão e o modo como se serve deles. Com efeito, não pode considerar-se Agostinho de Hipona um filósofo, se por tal se entende o pensador que se situa no âmbito exclusivamente racional, pois, como crente, apela à fé. Santo Agostinho não se preocupa em traçar fronteiras entre a fé e a razão. Para ele, o processo do conhecimento é o seguinte: a razão ajuda o homem a alcançar a fé; de seguida, a fé orienta e ilumina a razão; e esta, por sua vez, contribui para esclarecer os conteúdos da fé. Deste modo, não traça fronteiras entre os conteúdos da revelação cristã e as verdades acessíveis ao pensamento racional.
Para Santo Agostinho, «o homem é uma alma racional que se serve de um corpo mortal e terrestre»; expressa assim o seu conceito antropológico básico. Distingue, na alma, dois aspectos: a razão inferior e a razão superior. A razão inferior tem por objecto o conhecimento da realidade sensível e mutável: é a ciência, conhecimento que permite cobrir as nossas necessidades. A razão superior tem por objecto a sabedoria, isto é, o conhecimento das ideias, do inteligível, para se elevar até Deus. Nesta razão superior dá-se a iluminação de Deus.
O problema da liberdade está relacionado com a reflexão sobre o mal, a sua natureza e a sua origem. Santo Agostinho, maniqueu na sua juventude (os maniqueus postulam a existência de dois princípios activos, o bem e o mal), aceita a explicação de Plotino, para quem o mal é a ausência de bem, é uma privação, uma carência. E ao não ser alguma coisa positiva, não pode atribuir-se a Deus. Leibniz, no século xvii, «ratifica» esta explicação.
As Confissões, a sua obra de mais interesse literário, são um diálogo contínuo com Deus, em que Santo Agostinho narra a sua vida e, especialmente, a experiência espiritual que acompanha a sua conversão. Esta autobiografia espiritual é famosa pela sua introspecção psicológica e pela profundidade e agudeza das suas especulações.
Em A Cidade de Deus, a sua obra mais ponderada, Santo Agostinho adopta a postura de um filósofo da história universal em busca de um sentido unitário e profundo da história. A sua atitude é sobretudo moral: há dois tipos de homens, os que se amam a si mesmos até ao desprezo de Deus (estes são a cidade terrena) e os que amam a Deus até ao desprezo de si mesmos (estes são a cidade de Deus). Santo Agostinho insiste na impossibilidade de o Estado chegar a uma autêntica justiça se não se reger pelos princípios morais do cristianismo. De modo que na concepção augustiniana se dá uma primazia da Igreja sobre o Estado. Por outro lado, há que ter presente que na sua época (séculos iv-v) o Estado romano está sumamente debilitado perante a Igreja.
A CIDADE DE DEUS
“A Cidade de Deus” representa o maior monumento da antigüidade cristã e, certamente, a obra prima de Agostinho, na qual é discutida a questão da metafísica original do cristianismo, numa visão orgânica e inteligível da história humana, e resolve este problema ainda com os conceitos de criação, de pecado original e de Redenção. O conceito de criação é indispensável para o conceito de providência, que simboliza o governo divino do mundo e que é, por sua vez, necessário, a fim de que a história seja suscetível de racionalidade.
O conceito de providência era impossível no pensamento clássico devido ao basilar dualismo metafísico. Para entender plenamente o plano da história, é de grande importância a Redenção, através da qual é explicado o enigma da existência do mal no mundo e a sua função. Cristo tornou-se o centro sobrenatural da história, sendo o seu reino a cidade de Deus, representada pelo povo de Israel antes da sua vinda sobre a terra, e pela Igreja depois de seu advento. Contra este cidade se ergue a cidade terrena, mundana, satânica, que será absolutamente separada e eternamente punida nos fins dos tempos.
Agostinho distingue em três grandes seções a história antes de Cristo. A primeira concerne à história de duas cidades após o pecado original, que ficaram confundidas em um único caos humano, e chega até a Abraão, época na qual começou a separação. Na segunda, Agostinho descreve a história da cidade de Deus, recolhida e configurada em Israel, de Abraão até Cristo. A terceira retoma, em separado, a narrativa do ponto em que começa a história da Cidade de Deus separada, ou seja, desde Abraão para tratar paralela e separadamente da Cidade do mundo, que culmina no império romano.
Esta história, onde parece que Satanás e o mal têm o seu reino, representa uma unidade e um progresso para Cristo, sempre mais claramente, conscientemente e divinamente esperado e profetizado em Israel, e pelos povos pagãos a seu modo que, consciente ou inconscientemente, lhe preparavam diretamente o caminho. Depois de Cristo, cessa a divisão política entre as duas cidades, que se confundem como nos primeiros tempos da humanidade, com a diferença de que já não é mais união caótica, mas configurada na unidade da Igreja, que não é limitada por nenhuma divisão política, mas supera todas as sociedades políticas na universal unidade dos homens e na unidade dos homens com Deus. A Igreja, portanto, é acessível, invisivelmente, também às almas de boa vontade que, exteriormente dela não podem participar, e transcende, ainda, os confins do mundo terreno, além do qual está a pátria verdadeira.
Entretanto, visto que todos se encontram empiricamente confundidos na Igreja, ainda que só na unidade dialética das duas cidades, para o triunfo da Cidade de Deus, a divisão definitiva, eterna, absoluta, justíssima, realizar-se-á nos fins dos tempos, depois da morte, depois do juízo universal, no paraíso e no inferno. É uma grande visão unitária da história, não filosófica, mas sim teológica.

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